segunda-feira, 24 de maio de 2010

FAMÍLIA & FÁBRICA

FAMÍLIA & FÁBRICA
Relações entre a industrialização e a família no espaço do trabalho

Luiz Guilherme Augsburger

          O surgimento da sociedade industrial necessitou e, simultaneamente, produziu outra lógica social, outra organização nos vários níveis da sociedade. Partindo de leituras que retratam as ordenações do espaço público, privado e do trabalho pretende-se expor como esta alteração, que a princípio parece apenas de caráter econômico, possui uma amplitude muito maior. O principal foco deste ensaio será como a relação entra as instituições família e indústria-trabalho se transformaram, limitando o estudo temporalmente entre o fim do século XVII e início do século XIX e espacialmente no território francês. (PERROT, 1988, p. 53)

          Nos anos que sucederam a revolução francesa houve um crescente desenvolvimento do “espaço público” que, em contra partida, criava também o “espaço privado” e com isto também produzia uma “politização da vida cotidiana” (HUNT in: ARIÈS; DUBY, 1990, p. 21). No entanto, com o estabelecimento destas duas faces da vida, privada e pública, num primeiro momento não criavam uma dualidade nem mesmo possuíam seus limites bem definidos, senão uma fusão delas, assim, escreve Hunt: “essa preocupação obsessiva em manter os interesses privados à distância da vida pública logo virá, paradoxalmente, a apagar as fronteiras entre o público e o privado” (In: ARIÈS; DUBY, 1990, p. 22).

          Com o crescente processo de industrialização nos territórios franceses houve uma mudança no tipo de trabalhador, com uma grande concentração da população alocada na área rural precisou-se arranjar meios de acesso a estas pessoas. Uma das primeiras maneiras foi a construção de manufaturas próximas ao campo, assim, facilitando o acesso dos trabalhadores ao seu local de trabalho, além disto, dentro destes novos espaços, utilizou-se da estrutura destas famílias, de sua relação com o trabalho e de sua forma de transmissão de saberes:

Os fabricantes procuravam empregar toda a família, para garantir o recrutamento e a fidelidade da mão-de-obra. Cada membro da família é usado conforme sua força e estatuto. Como no sistema doméstico, o pai garante a aprendizagem, a disciplina e, sendo o caso, a remuneração dos seus filhos. [...] Os pais, portanto, são responsáveis pelo trabalho e pela subordinação dos seus filhos. (PERROT, 1988, p. 60)

          De tal maneira, parece que o espaço doméstico e o da fábrica se fundem, um torna-se o prolongamento do outro, com isto também, o dono da fábrica mantém parte do controle nas mãos dos pais, mantendo-o na lógica familiar.

A eventual revolta dos jovens contra a fábrica se transforma em revolta contra o pai. Desta forma a industrialização, longe de destruir a família, como muitas vezes se supôs , tenta reforçá-la para usá-la para seus próprios fins, não sem aumentar as contradições e tensões internas (PERROT, 1988, p. 61).

          Porém está desresponsabilização que sofria a instituição produzia uma perda de controle sobre os indivíduos, logo, isto demandava um aperfeiçoamento, do controle por parte da fábrica.

          Além disto, há muito, já havia começado um encolhimento das relações privadas ao espaço mais restrito,

O domínio da vida pública [...] ampliou-se de maneira constante, preparando o movimento romântico do fechamento do indivíduo sobre si mesmo e da dedicação à família, num espaço doméstico determinado com uma maior precisão (HUNT in: ARIÈS; DUBY, 1990, p. 21),

com isto não mais cabia no espaço da fábrica, na disciplina industrial uma reprodução, uma penetração do que seria condizente ao privado (HUNT in: ARIÈS; DUBY, 1990, p. 21), o que antes era aberto, as relações pais e filhos, as relações marido-mulher passavam cada vez mais a restringir-se à casa, a vida privada tornava-se, então, nas palavras de Hunt, uma “vida secreta” (In: ARIÈS; DUBY, 1990, pp. 42, 43). Uma fragmentação da unidade familiar também, acentuadamente nas grandes cidades, contribuiu para a desvinculação entre a família e a fábrica (HUNT in: ARIÈS; DUBY, 1990, p. 39)

          Dentre os problemas que este modo familiar de indústria apresenta está: (1) a ineficiência no policiamento dos filhos pelos pais, (2) “degeneração”, uma vez que os pais exigem que os patrões aceitem seus filhos desde muito cedo, indo contra as medidas de obrigatoriedade escolar. “Portanto, escreve Michele Perrot, é necessário substituir essas famílias duplamente falhas. A fábrica deve construir sua própria disciplina” (PERROT, 1988, p. 64).

          Antes do surgimento de uma disciplina fabril que exclua a lógica familiar do espaço de produção – que ocorreu, mas de maneira gradual e sem excluir outras formas de disciplina, nas fábricas, antes, existindo paralela e comutativamente com elas (PERROT, 1988, p. 55) – pode-se observar um movimento de transformação da figura do patrão, em uma espécie de pai para os operários (PERROT, 1988, pp. 61, 62). E como mostra, ainda, Michele Perrot, toda a dimensão deste “paternalismo” seria percebida com o advento dos regimes fascistas, italiano e alemão (1988, p. 62)

          As populações vindas do meio rural, que traziam, consigo, valores morais mais atrelados ao período aristocrata-monárquico, viam-se imersos numa nova rede de valores que nem sempre negavam os antigos, porém repudiava alguns, o que alterou as relações internas às fábricas (HUNT in: ARIÈS; DUBY, 1990, p. 23), possibilitando um novo jogo e novas regras dentro deste espaço.

          Um afastamento da figura do patrão e de seu contato com os trabalhadores medra dentro dos espaços das indústrias, o patrão cada vez mais distante fisicamente também afasta a pessoalidade das relações com os trabalhadores, essa despersonalização associa-se as necessidades de não mais tratar-se o operário com um “familiar” e sim com uma peça, que possui uma funcionalidade dentro da maquinaria que é a fábrica. Esta impessoalidade nas relações tira a um peso sobre o patrão de ter de prover o bem estar do funcionário, pelo que mostra a autora de Os excluídos da história:

[...] preferem [as grandes fábricas] um sistema de exclusão mais ou menos inspirado no exército e no colégio. Assim no Crusot, na Fábrica Schneider, a escala é a seguinte advertência, suspensão (de algumas horas até vários dias) e, em último recurso, demissão (1988, p. 69).

          As principais preocupações deste novo patrão estão cada vez mais voltadas à sua propriedade, e os rendimentos que esta provém.
Com a migração da população para as áreas urbanas pode-se ver uma crescente escolarização destas pessoas (PERROT, 1988, p. 53), produzindo-se assim, trabalhadores já inseridos em lógicas disciplinares que favoreciam ao regime de trabalho das indústrias, tanto corporalmente, submetendo-os a longas horas de movimentos repetitivos (PERROT, 1988, p. 68), quanto mentalmente inserindo-os num mundo racionalizado. (PERROT, 1988, p. 64)

          A crescente racionalização do mundo urbano francês, como se pode ler na obra de Lynn Hunt, Revolução Francesa e a vida privada, penetrou fundo nas disciplinas industriais (In: ARIÈS; DUBY, 1990, p. 43). Medidas que mais e mais visavam a otimização do tempo, do espaço e da produção do trabalho, indo de encontro a cada centímetro da fábrica, em cada segundo do horário de trabalho, seja com o avanço da mecanização – o aumento do número e do uso das máquinas – do trabalho, o que empunha ao corpo do trabalhador o ritmo da máquina; seja ligando o salário do trabalhador diretamente ao número de peças produzidas (PERROT, 1988, p. 65), seja criando cargos como o de contramestre, que além de vigiar os trabalhadores, cuidava da manutenção e do andamento da maquinaria e da produção, assim extraía-se os saberes das mãos dos outros operários e os punha na mão de só. (PERROT, 1988, pp. 70, 71)

Referências:

ARIES, Philippe; DUBY, Georges. História da vida privada. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 5v.

PERROT, Michelle; BRESCIANI, Maria Stella Martins. Os excluídos da historia: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. 332 p.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Ensaio sobre a preguiça

Ensaio sobre a preguiça

Fabiele Lessa[1]

Uma leva de pensamentos sobre como seria o mundo sem o trabalho transcorre “o telencéfalo altamente desenvolvido” de um animal possuidor do “polegar opositor” (ILHA DAS FLORES, 1989), o então ser humano, que está a contemplar o mar em um fim de tarde. Mas, no mesmo instante, no mais íntimo momento de solidão em uma estação de metrô depois de dez horas de labuta em uma fábrica, o pai de família se orgulha de ter vendido seu corpo, pois bem sabe que “o trabalho dignifica o homem”. Ambos cristãos-ocidentais são donos de uma vida economicamente distinta, de diferentes graus de escolarização, no entanto, ambos e suas famílias abominam a preguiça: “O laço que ata preguiça e pecado é um nó invisível que prende imagens sociais de escárnio, condenação e medo” (CHAUI, 1991, p 10). Com o desenrolar das décadas, a façanha das máquinas, a produção do sentido da vida – “mediocridade feliz” -, o pecado se faz imoral à sociedade numa confusão com a própria ética. E assim, os ambos se multiplicam em múltiplos e diversos outros homens e mulheres que fazem da preguiça a fraqueza, o vício, a causa das criminalidades, a extrapolação dos prazeres, a destruição da família, a propensão da vida com menos racionalização de promessas futuras, a possibilidade da vida no espírito trágico.

A preguiça de um deve ser maquiada de outrem, assim, o medo do inferno em troca do medo dos olhos e bocas alheios. O céu adquirido com o emprego dos sonhos nos formatos mais diferenciados que a contemporaneidade tem produzido: operário, estagiário, profissional autônomo, liberal, funcionário-público, no modelo de trabalho tradicional ou com a gestão colaborativa. Mais os anos passam, mais “o trabalho como um freio para as nobres paixões do homem” (LAFARGUE, 1991, p 70), um dogma edificante da modernidade, da sociedade industrial, esta que em “sua instauração supõe não só transformações econômicas e tecnológicas, mas também a criação de novas regras do jogo, novas disciplinas” ( PERROT, 1988, p 53). Se na França do século XIX os operários eram os excluídos da história, que dizer dos preguiçosos convictos?

Lafargue ao escrever sobre a preguiça em 1880 pressupôs a falência do ócio justamente em uma época em que “burguês”, “proletariado”, “capital” e “trabalho” eram um dos termos efervescentes dos textos e discussões do cerco intelectual. No mesmo período em que se desenvolviam novas tecnologias, a ascensão da máquina, a criação de indústrias, aprimoramento da produção, teve início a percepção das estratégias de controle do operariado, a construção dos conceitos de “exploração da força de trabalho”, a “mais-valia”, a “luta de classes”, apontados por Marx, a “propriedade” criticada por Proudhon, entre tantos outros como Bakunin, Engels e Weber que conectados em suas trupes -anarquismo, comunismo ou socialismo e seus derivados - rompiam com a aceitação do modo de produção do momento. Segundo Chaui, os escritos de Lafargue que compilam o livro O Direito à Preguiça, vão de encontro com o “trabalho alienado”, conceito também explanado por seu sogro, Marx. Uma escrita ácida e sarcástica, de uma fala direta com os personagens do texto, burgueses e proletariados:

Trabalhem, trabalhem, proletários, para aumentar a riqueza social e suas misérias individuais, trabalhem, trabalhem para que, ficando mais pobres, tenham mais razões para trabalhar e tornarem-se miseráveis. Essa é a lei inexorável da produção capitalista.(LAFARGUE, 1991, p 79)

As palavras de Lafargue são ousadas, expõem a sujeição do proletariado do século XIX à uma força que nos tempos gregos, por exemplo, era reservado aos escravos; utiliza de termos religiosos que escamoteiam a sua ira numa ironia que desvela o espírito do capitalismo de Weber quando redige sobre a ética protestante. Destarte, o “Progresso” como o novo Deus para as quais as louvações da classe trabalhadora está direcionando a fé. E ainda a tradição familiar contestada no seio da disciplina fabril instalada.

Embora, alguns dos conceitos disseminados nesse período do escrito de Lafargue estejam hoje enfraquecidos devido à industrialização ter tomado outros rumos, o quarto pecado capital soprado por entre as frestas da igreja e do estado, é presente nos cálices e nos devaneios da atualidade. Muito timidamente, a preguiça agenda hora para se manifestar nesses corpos: As férias, os finais de semana e os feriados, tão ocupados pelos novos trabalhadores quanto os semáforos das metrópoles ocupados com seus e “vadios” e “vagabundos”.

Sobretudo, na maquinaria que perdura, a dignidade ainda perpassa pelo ato de trabalhar e a preguiça ainda é a destruidora dos lares e a geradora de culpa. Nenhum triunfo de “progresso” almejado no século XIX, apenas a transformação do trabalho.

Referências

LAFARGUE, Paul. O direito a preguica. 3. ed. Lisboa : Teorema, 1991?

ILHA das Flores. Direção: Jorge Furtado, 1989.

PERROT, Michele. Os excluídos da historia: operários, mulheres e prisioneiros. -Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1988. p. 53- 125.



[1] Acadêmica do 5º semestre de História FURB.