segunda-feira, 5 de julho de 2010

Um dia entre tantos





Era uma quarta-feira nublada e quase fria. Diferente dos outros dias ensolarados em que os pontos de ônibus já deviam estar saturados de ouvir sobre o clima. Juro que esperava por um dia que não só as nuvens fossem exóticas, proporcionando desenhos infinitos. Queria um café sem açúcar para edulcorar a mesmice, amargurando o cotidiano e esmagando as horas com o calor que deslizava em minha língua desembocando em meu estômago. A essas tantas de meus pensamentos, ainda estava forçando a catraca que liberou aquele som peculiar de moedas adentrando em um cofre, mergulhando-se junto de tantas outras, dizendo “Socorro, eu serei comida”. Segurei minha mala preta com meu notebook, arrumei a gravata e verifiquei se o sapato estava sujo. Não, estava exatamente como eu havia deixado, a ponto de espelhar os vidros da janela da locomotiva moderna em que eu embarcara. Olhei para frente e vi uma moça de nariz, olhos e boca pequena. O rosto era pequeno e a pele era branca, como a Santa MariaNossa Senhora do Desterro, enfim, aquelas santas. Não consegui parar de olhá-la. Aproveitei porque o olhar dela estava direcionado ao nada para fora daquele ônibus cheio de gente, cheias de pensamentos distintos dos meus e contemplei-a. Vezes as sombras a deixavam escura, vezes os tímidos raios a iluminavam acentuando sua pele. Vezes imaginei-me ao lado dela, vezes imaginei-a de pé ao meu lado esquerdo. Ela era linda. Um forte movimento me puxava para a direita. Fui bruscamente interrompido por um brutamontes que me arrastou com sua mochila. Tive de sair dali. Queria olhar a menina santa. Queria perguntar seu nome, se trabalhava, estudava, lia. Impossível competir com todos aqueles homens e mulheres suados das fábricas, aqueles moleques de faculdade e os aposentados que têm seus lugares preferenciais. Então fui comprimindo-me até ao final daquele automóvel que se enchia de vozes, de roupas coloridas, gente estranha, mas tão semelhantes. Os sons prontos de “desculpa”, “posso passar?”, “que ônibus lotado!”, “Caralho, que demora, já tou quinze minutos atrasado porque essa porra não anda”. Logo desliguei meus ouvidos para esse tipo de conversa e acionei os tímpanos para suavizarem a canção sexual que as portas quando abrem e fecham produzem. Pensei na menina santa, e então a imaginei em minha frente naquele corpo masculino que nos embalos do vai-vem alisavam meu peito, desajustando minha gravata.  Um negro, também de olhos, nariz e rosto pequenos, mas os lábios eram fartos de carne. Era lindo. Uma estátua viva de São Benedito.  Ele estava de frente e com tantos outros corpos tapando as janelas restava a olhar ou para baixo, ou para cima ou para frente. Fitei-o enquanto ele em não sei em que pensamento, olhou para os pés e inclinou um mínimo a cabeça, franziu a testa e mexeu os dedos do pé direito. Ali era somente eu e meu pensamento, que era ele. A menina santa deu lugar ao São Benedito, eu pensei e estiquei a ponta dos lábios para a esquerda, com um suspiro levemente alto, então ele finalmente olhou para frente. E olhou para os meus olhos, passando pelas duas pintas que registram minha bochecha direita, parou no nariz, e logo abaixo mirou minha boca. A boca e os olhos meus, a boca e os olhos dele, num movimento constante, interrompidos por alguns “com licença”, “opa, foi mal!”. Nessa confusão tão previsível de todos aqueles corpos,“Foda-se”, eu pensei , e acho que ele pensou o mesmo. Um beijo suado. Salivas sedentas. Mãos nos cabelos. Mãos nas costas. Mãos nas bundas. Suspiros.  Dois corpos fartos de desejo encarcerado e as mais estranhas vozes de raiva, nojo, euforia que aquela abundância de outros corpos fabricou. Descemos no primeiro ponto com as mãos dadas, procuramos um canto daqueles familiares da rua. Cheiro de homens e mulheres, suor, urina, bebida e cigarro e um pixe do “A” dentro de um círculo. Apenas os carros seguindo o fluxo, escondendo nossos gritos de prazer. Apenas as lojas se abrindo no mesmo horário de todos os dias, dissimulando nossos movimentos. Ali estávamos tresloucados sem mais conter os desejos. Ali se exalou o cheiro de dois homens nus deste cotidiano mesquinho, desta vida besta de convicções imbecis. Vestimo-nos e fomos ao trabalho. 

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Democracia militar





retirado de http://sinmiedo.tumblr.com/

terça-feira, 22 de junho de 2010

Dica

Acesso à downloads interessantes: http://www.malestarnacultura.ufrgs.br/documentos.php

terça-feira, 15 de junho de 2010

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Entrevista com antoine Pettit

MARIE BOURDEAUX: Antoine, em seu último livro você fala de um sujeito que lê escrito num muro a frase de Nietzsche “Deus está morto”, e partindo do choque que ele sofreu ao ler essa frase, ele muda sua forma de pensar e entra em contato com a intelectualidade. Muitas pessoas viram nisso uma apologia ao vandalismo, como se pichar fosse algo bom.

ANTOINE PETTIT: Bem, nunca disse que pichar fosse algo bom, se utilizei a frase de alguém tão famoso como Nietzsche, é porque gosto dele, e como já devem ter percebido, não trabalho com a lógica de bem e mal. Nem por isso acho que pichar um muro seja o fim do mundo, veja bem, fazem alguns meses que alguns manifestantes escreviam algo num túnel de Porto alegre. Como de praxe a polícia veio para intervir. Quando chegaram lá perceberam que o que eles faziam era simplesmente limpar com escovões e vassouras a fuligem grudada na parede do túnel. Agora eu lhe pergunto, qual é o grande vandalismo, pintar uma cidade com fuligem, e vez ou outra passar uma tinta de cal para dizer que está branco e limpo, ou alguém buscando espaço para se expressar. Quais locais públicos você pode se expressar sem se curvar a alguém como a mídia por exemplo, que por sinal é o que estou fazendo agora? Já tive livros censurados! Para mim estas coisas podem ser um tipo maior de vandalismo.

MB: Alguns grupos fizeram duras criticas ao seu livro, pois nele seu personagem esnoba várias vezes as outras pessoas por não lerem.

AP:Não sei até onde você leu meu último livro, mas se você perceber bem, o que tentei passar é que todo esse papo de intelectuais, pode soar fascista muitas vezes, excludente demais. Por exemplo, você como jornalista tem um status muito mais válido para vir me entrevistar, e eu como escritor tenho um status válido para falar, e o mais importante, ser ouvido. Meu personagem se torna um grande idiota quando percebe que “está mais inteligente que os outros”, se é que você consegue me entender. Não quis passar a idéia de que ele se torna alguém melhor ao ler livros. Quis passar um pouco a idéia de que ele se utiliza de alguns livros, conversas e experiências, a pichação por exemplo, para pensar sobre si, que tudo aquilo refletia diretamente nele, e ele estava ligado, independente de sua vontade, com o que o cercava. Nisso ele não deveria ter tido as atitudes estúpidas que teve, mas por um lado precisou delas para perceber que era estúpido.

MB: Muitos grupos religiosos o proibiram de ser lido, o acusando principalmente por querer matar Deus, e por sua literatura ter um cunho ateísta.

AP: Nunca disse que Deus não existe, e acredito que nem Nietzsche. Deveriam ler a segunda parte da famosa frase dele.

MB: Há um desgosto da crítica em relação a sua obra, principalmente nos contos, onde eles sempre “estão mais para contos sexuais...”

AP: “...do que literários”, essa eu ouvi falar. Imaginava que uma hora iriam soltar uma dessas. Bukowski por um lado passou por isso, e muitos contos seus realmente eram para publicações pornô. Eu como, não deveria revelar minhas fontes pois assim perco a aura de criatividade, como grande fã dele, nesse ponto acabo falando de sexo. Bem, não é de forma séria como Freud talvez, mas você chama Freud de pornô? Ninguém o chama assim. O lêem, e o lêem sério, eu mesmo já li e as vezes leio. Acabam não me levando a sério talvez por não usar um linguajar mais rebuscado, ele é simples, escrevo como falo, e falo como eu converso. Se eu e você começássemos a tomar um vinho agora, e conversarmos, e depois de algumas taças falarmos sobre sexo, falaríamos como? Não sei talvez eu tenha um problema sério com sexo, penso muito em sexo, em compensação muitas vezes não dou a mínima para sexo. Além do mais, as pessoas gostam de sexo, querem saber sobre sexo, querem falar sobre sexo, desde o discurso aceito, que passa por Freud e a anatomia, até mesmo pela subliteratura, filmes pornôs. Uma vez houve um ciclo de debates em minha cidadezinha, tiveram algumas conversas, a que mais chamou atenção foi justamente a sobre filmes pornôs, não foi a sobre o corpo na educação, na arte, o corpo disciplinado, queriam ver o corpo pornografado. Ainda estou montando minhas peças a respeito disso tudo também, e talvez por isso mesmo, o sexo ocupe uma grande fração de meus temas.

MB: você falou agora a pouco sobre não revelar suas fontes, antes de citar Bukowski como grande influência, o que você quis dizer com isso e qual o papel de Bukowski na sua escrita?

AP: Bem, depois que você lê Fante, querendo ou não Bukowski deixa de ser tão original, mas ainda assim há nele algo de especial que não há em Fante. Li mais Bukowski do que Fante, e Bukowski parece ser mais rufião, indomável e Fante soa mais desesperador. Você já leu 1933 foi um ano ruim de Fante? Dá vontade de chorar, de correr, de fugir. É melancólico. Bukowski nesse ponto não foge muito, se você já teve seus 17 anos, não tinha emprego, não estudava nada, e leu misto-quente, bem, o livro me ajudou muito. As vezes esquecemos que um artista não brota do nada, não saímos por ai fazendo “arte”. Podemos por acidente fazer algo muito legal, mas para se ter consciência, sentar e fazer algo premeditado, isso necessita uma bagagem, e muitas vezes saber o que vem nessa mala, pode parecer como um esvazio de ar num balão. Bukowski é um grande escritor, mas não me baseio só por ele, há escritores teóricos que nunca me são perguntados a respeito por exemplo.

MB: E quais seriam esses escritores teóricos?

AP: Bem, sou influenciado por tudo ao meu redor, as coisas se colam em mim e formam o meu eu. É assim que formamos nossa identidade. Porque perguntamos que pessoas influenciaram, e nunca o que, ou melhor, que sensações. Nunca conversei com Dostoievski ou James Joyce, mas eles estão ali. Agora porque eles me influenciam mais que Robert Louis Steverson? Acredito que é devido as sensações que eles me passaram, as sensações ao ler o livro, ao terminá-lo. As sensações derivadas do que ficou martelando em minha cabeça, do que eu fiquei pensando depois de ler o livro. Meu último livro tenta falar disso quando o personagem lê a pichação, quando conversa com as pessoas, quando observa o cotidiano, e nisso ele vai chegando a lugares. Baudeleire se utiliza dessas trivialidades para escrever sua obra, porque a passante de seu poema não ficou famosa por o ter influenciado, sem ela ele nunca escreveria aquele poema, assim como sem os livros que lera, e as discussões que tivera. Você já viu irmãos gêmeos? Por mais parecidos, semelhantes, eles nunca são iguais, e não falo só da parte física, ele pensam diferente, agem diferente, cada um deles teve suas sensações, passaram por experiências diferentes. Isso tudo vai nos marcando. Acredito que mesmo se eu nascesse novamente, na mesma família tempo, espaço e tudo igual ao meu primeiro nascimento, eu chegaria a algum lugar diferente, pois em algum momento algo diferente aconteceria, como acontece agora. E mesmo se não ocorresse nada, o tédio me ocorria, e aí já é algo que me ocorreu. Bem, mas você ainda quer saber a respeito de quais são esses autores teóricos. Como sabe passei pela universidade, pretendi durante um tempo seguir carreira, mas acabei desistindo por vários motivos, entre eles o fato de ter conseguido caminhos mais interessantes. Talvez pela minha fala, você identifique certos autores, desde os literários que já citei e os teóricos. Estudei durante um tempo o idioma do alemão, do qual não domino muito bem, mas o que importa é que estudei este idioma tão difícil e nada bonito como o português ou o francês, devido a minha fixação pela filosofia alemã. Principalmente Heidegger e Nietzsche. Também há algo interessante em Kant, mas ele é mais monótono, mesmo assim gosto dele. E não pense que por isso sou um grande conhecedor desses pensadores. Há um pensador francês que se utiliza em alguma medida desses três autores que citei. Não que ele seja um discípulo deles, mas ele se investiga sobre a esteira deixada por eles, que no caso seria Michel Foucault, este para mim é um dos maiores pensadores, por vários motivos, mas nem por isso tiro o mérito dos outros, e também procuro tomar certo cuidado com essa minha fixação. Em certa medida outro alemão, Marx, mas não tanto quanto se gostaria. Não me vejo como um Marxista ou Marxiano, me vejo bem longe disso. Poderia citar uma infinidade, como Roger Chartier, as leituras de Chartier foram importantes para mim, percebe-se algo dele toda vez que falo sobre livros. Me utilizo muito da história para escrever minhas obras, e nisso as reflexões abertas pela escola de annales são fundamentais. Mas não só de livros, a minha concepção estética e visual é muito influenciada pela Bauhaus, o diretor polonês Kieslowski também consegue me desafiar... vários autores, poderia citar um infinidade, mas talvez por esses me virem a mente imediatamente, sejam os mais marcados em mim.

MB: algumas pessoas lhe vêm como um cronista, outros como um contista, pois consideram seus romances insuficientes, outros já um romancista, alguns conhecem seus poucos poemas e dizem que você é um poeta nato, outros dizem que você simplesmente não é intelectual algum. Como você se define?

AP: Como um escritor. Eu simplesmente escrevo, não é o fato de eu saber que aquilo é um conto ou um romance ou crônica ou prosa, não vou sentar e pensar “quero escrever uma prosa”, e ai então escreverei uma prosa. Sento e escrevo, apenas isso. E quanto a imagem do intelectual, como um grande conhecedor, não me agrada muito, geralmente converso com pessoas sem diploma e tenho conversas maravilhosas, outras vezes o sujeito é professor universitário e fala besteiras terríveis!

MB: Durante seu tempo na universidade, como foi para você esta experiência?

AP: Há algo que eu não suporto em instituições de ensino, o problema do comte-údo, de Auguste Comte mesmo. Você ter que ser obrigado a estudar algo. Já é terrível cobrarem nota, depois diploma e todo esse ciclo sem fim. Me incomoda esse problema, sempre. Não por acaso que chegamos em dado momento de nossa vida, e não sabemos o que pensar, o que fazer, de tanto tempo acostumados a ouvir alguém falar para nós o que devemos fazer, ficamos desorientados ao não ouvirmos ordens. Isso é de uma violência tremenda, por isso acredito que vivemos em tempo de apatia e não de paz.

MB: Você é a favor da guerra?

AP: Sou contra a violência, sou um sujeito muito pacífico. Esquecemos que vivemos em um tempo seguro como nunca, e mesmo assim achamos que está tudo violentíssimo. Por exemplo, ao assistirmos um dos vídeos de Hitler ou Mussolini discursando, ficamos assustados, igual como quando eu era pequeno e ficava com os do Enéias. O que esquecemos é que na época de Hitler, seu discurso convencia a todos, fazia a platéia se emocionar. Era uma boa oratória na época, hoje se eu aumentar o tom de voz, já me chamam de violento. Mas não nos preocupamos com as prisões que cometem a violência de isolar as pessoas, as deixar a pão e água, as escolas que obrigam a uma criança que nada pode fazer contra, a ficar parada, e não se mexer, a obedecer. Não nos preocupamos com pessoas uniformizadas e armadas e treinadas para matar e machucar, a polícia ou exército, ou os seguranças em algum lugar. As câmeras nos filmando o tempo todo. A poluição que soltamos na terra, que é muita. Isso tudo é de uma violência incrível. Poderia citar mais outros tantos exemplos, tudo isso é aceito, e talvez por isso sejam coisas tão violentas. A maior violência dessas coisas é o fato de elas serem aceitas, e pedidas. Acho incrível como se investe em prisões mesmo sabendo que elas não surtem o efeito discursado como desejado. Neste ponto deveriam aprender com o empresariado, se você investe num setor que não lhe dá algo que você quer, você para de investir nele não é mesmo? Ou será que eles sabem muito bem como a prisão funciona e a mantém, justamente porque querem ela exatamente como ela é, eles têm assim um ambiente cheio de “argumentos” para justificar a presença daqueles homens armados entre nós? A guerra é a política por outros meios, ou a política é a guerra por outros meios... isso me parece tão complexo quanto a questão do sexo.

MB: E como é o seu lado político?

AP: Basicamente falei do meu lado político até agora.

MB: Algumas vezes grupos feministas o acusam como um machista e sabe-se que o público feminino não é grande fã seu, mas como você se define?

AP: Nunca quis ser machista. Porém há um problema que me incomoda muito, fui criado num mundo machista e para ser machista. Por mais que eu tente há marcas no me corpo que indicam isso, e vez por outra elas podem se refletir em algum lugar. Porém também não podemos forçar nossa vista para utilizar alguns óculos, os livros são isso. Talvez pessoas não gostam do que eu escrevo, mas forçam em me ler por algum motivo, e ficam bravas e interpretam da forma que eu não gostaria. Por enquanto não é um grande problema, ninguém me bateu na rua por exemplo. Também prefiro que entendam como quiser o que eu escrevo, não esquecendo que essa é sua interpretação e que quero dizer algo. As vezes também não quero dizer nada, só quero fazer uma história legal o suficiente para ser lida. Não concordo com a idéia das coisas terem sentido o tempo todo. Quanto ao público feminino, não sei porque não me lêem, talvez pelo fato de vivermos numa sociedade tal que divide as coisas entre as de menino e as de menina. Não nego diferenças entre os dois sexos, mas até onde isso não é construído? Porque também quando uma autora é famosa por seu público feminino este tipo de pergunta não surge? Fico abismado com o movimento histórico que ocorreu devido principalmente as duas grandes guerras. Como se sabe os maridos iam para o front enquanto as mulheres e crianças ficaram. Como a maior parte dos homens estava se arrebentando e morrendo nos campos de batalha, alguém tinha que produzir as munições, comidas, roupas, já que não paramos de consumir estas coisas devido a uma guerra. Nisso as mulheres puderam ocupar massiçamente o mercado de trabalho. Seu numero só foi aumentando, descobriram até mesmo vantagens em se ter mulheres trabalhando, além do fato de aceitarem trabalhar por menos. Okay, acho muito legal tudo isso, hoje é normal mulheres saberem ler e escrever, até mesmo podem fazer faculdade. Mas ainda devem cuidar da casa, ter filho, casar... e todas essas coisas ditas “de mulher”. Pouco se fala desse tipo de machismo.

CHARLES STEHL: Nós só queremos agradecer o tempo cedido, e lhe dizer que foi uma ótima entrevista.

AP: Vão me mandar uma cópia depois? Quero ver o que vão fazer com o que vou falar.

CS: Sim enviaremos, e não se preocupe, será publicado a entrevista integral.

AP: Até mesmo agora que estamos conversando?

MB: Se você quiser sim.

AP: Quero!

segunda-feira, 24 de maio de 2010

FAMÍLIA & FÁBRICA

FAMÍLIA & FÁBRICA
Relações entre a industrialização e a família no espaço do trabalho

Luiz Guilherme Augsburger

          O surgimento da sociedade industrial necessitou e, simultaneamente, produziu outra lógica social, outra organização nos vários níveis da sociedade. Partindo de leituras que retratam as ordenações do espaço público, privado e do trabalho pretende-se expor como esta alteração, que a princípio parece apenas de caráter econômico, possui uma amplitude muito maior. O principal foco deste ensaio será como a relação entra as instituições família e indústria-trabalho se transformaram, limitando o estudo temporalmente entre o fim do século XVII e início do século XIX e espacialmente no território francês. (PERROT, 1988, p. 53)

          Nos anos que sucederam a revolução francesa houve um crescente desenvolvimento do “espaço público” que, em contra partida, criava também o “espaço privado” e com isto também produzia uma “politização da vida cotidiana” (HUNT in: ARIÈS; DUBY, 1990, p. 21). No entanto, com o estabelecimento destas duas faces da vida, privada e pública, num primeiro momento não criavam uma dualidade nem mesmo possuíam seus limites bem definidos, senão uma fusão delas, assim, escreve Hunt: “essa preocupação obsessiva em manter os interesses privados à distância da vida pública logo virá, paradoxalmente, a apagar as fronteiras entre o público e o privado” (In: ARIÈS; DUBY, 1990, p. 22).

          Com o crescente processo de industrialização nos territórios franceses houve uma mudança no tipo de trabalhador, com uma grande concentração da população alocada na área rural precisou-se arranjar meios de acesso a estas pessoas. Uma das primeiras maneiras foi a construção de manufaturas próximas ao campo, assim, facilitando o acesso dos trabalhadores ao seu local de trabalho, além disto, dentro destes novos espaços, utilizou-se da estrutura destas famílias, de sua relação com o trabalho e de sua forma de transmissão de saberes:

Os fabricantes procuravam empregar toda a família, para garantir o recrutamento e a fidelidade da mão-de-obra. Cada membro da família é usado conforme sua força e estatuto. Como no sistema doméstico, o pai garante a aprendizagem, a disciplina e, sendo o caso, a remuneração dos seus filhos. [...] Os pais, portanto, são responsáveis pelo trabalho e pela subordinação dos seus filhos. (PERROT, 1988, p. 60)

          De tal maneira, parece que o espaço doméstico e o da fábrica se fundem, um torna-se o prolongamento do outro, com isto também, o dono da fábrica mantém parte do controle nas mãos dos pais, mantendo-o na lógica familiar.

A eventual revolta dos jovens contra a fábrica se transforma em revolta contra o pai. Desta forma a industrialização, longe de destruir a família, como muitas vezes se supôs , tenta reforçá-la para usá-la para seus próprios fins, não sem aumentar as contradições e tensões internas (PERROT, 1988, p. 61).

          Porém está desresponsabilização que sofria a instituição produzia uma perda de controle sobre os indivíduos, logo, isto demandava um aperfeiçoamento, do controle por parte da fábrica.

          Além disto, há muito, já havia começado um encolhimento das relações privadas ao espaço mais restrito,

O domínio da vida pública [...] ampliou-se de maneira constante, preparando o movimento romântico do fechamento do indivíduo sobre si mesmo e da dedicação à família, num espaço doméstico determinado com uma maior precisão (HUNT in: ARIÈS; DUBY, 1990, p. 21),

com isto não mais cabia no espaço da fábrica, na disciplina industrial uma reprodução, uma penetração do que seria condizente ao privado (HUNT in: ARIÈS; DUBY, 1990, p. 21), o que antes era aberto, as relações pais e filhos, as relações marido-mulher passavam cada vez mais a restringir-se à casa, a vida privada tornava-se, então, nas palavras de Hunt, uma “vida secreta” (In: ARIÈS; DUBY, 1990, pp. 42, 43). Uma fragmentação da unidade familiar também, acentuadamente nas grandes cidades, contribuiu para a desvinculação entre a família e a fábrica (HUNT in: ARIÈS; DUBY, 1990, p. 39)

          Dentre os problemas que este modo familiar de indústria apresenta está: (1) a ineficiência no policiamento dos filhos pelos pais, (2) “degeneração”, uma vez que os pais exigem que os patrões aceitem seus filhos desde muito cedo, indo contra as medidas de obrigatoriedade escolar. “Portanto, escreve Michele Perrot, é necessário substituir essas famílias duplamente falhas. A fábrica deve construir sua própria disciplina” (PERROT, 1988, p. 64).

          Antes do surgimento de uma disciplina fabril que exclua a lógica familiar do espaço de produção – que ocorreu, mas de maneira gradual e sem excluir outras formas de disciplina, nas fábricas, antes, existindo paralela e comutativamente com elas (PERROT, 1988, p. 55) – pode-se observar um movimento de transformação da figura do patrão, em uma espécie de pai para os operários (PERROT, 1988, pp. 61, 62). E como mostra, ainda, Michele Perrot, toda a dimensão deste “paternalismo” seria percebida com o advento dos regimes fascistas, italiano e alemão (1988, p. 62)

          As populações vindas do meio rural, que traziam, consigo, valores morais mais atrelados ao período aristocrata-monárquico, viam-se imersos numa nova rede de valores que nem sempre negavam os antigos, porém repudiava alguns, o que alterou as relações internas às fábricas (HUNT in: ARIÈS; DUBY, 1990, p. 23), possibilitando um novo jogo e novas regras dentro deste espaço.

          Um afastamento da figura do patrão e de seu contato com os trabalhadores medra dentro dos espaços das indústrias, o patrão cada vez mais distante fisicamente também afasta a pessoalidade das relações com os trabalhadores, essa despersonalização associa-se as necessidades de não mais tratar-se o operário com um “familiar” e sim com uma peça, que possui uma funcionalidade dentro da maquinaria que é a fábrica. Esta impessoalidade nas relações tira a um peso sobre o patrão de ter de prover o bem estar do funcionário, pelo que mostra a autora de Os excluídos da história:

[...] preferem [as grandes fábricas] um sistema de exclusão mais ou menos inspirado no exército e no colégio. Assim no Crusot, na Fábrica Schneider, a escala é a seguinte advertência, suspensão (de algumas horas até vários dias) e, em último recurso, demissão (1988, p. 69).

          As principais preocupações deste novo patrão estão cada vez mais voltadas à sua propriedade, e os rendimentos que esta provém.
Com a migração da população para as áreas urbanas pode-se ver uma crescente escolarização destas pessoas (PERROT, 1988, p. 53), produzindo-se assim, trabalhadores já inseridos em lógicas disciplinares que favoreciam ao regime de trabalho das indústrias, tanto corporalmente, submetendo-os a longas horas de movimentos repetitivos (PERROT, 1988, p. 68), quanto mentalmente inserindo-os num mundo racionalizado. (PERROT, 1988, p. 64)

          A crescente racionalização do mundo urbano francês, como se pode ler na obra de Lynn Hunt, Revolução Francesa e a vida privada, penetrou fundo nas disciplinas industriais (In: ARIÈS; DUBY, 1990, p. 43). Medidas que mais e mais visavam a otimização do tempo, do espaço e da produção do trabalho, indo de encontro a cada centímetro da fábrica, em cada segundo do horário de trabalho, seja com o avanço da mecanização – o aumento do número e do uso das máquinas – do trabalho, o que empunha ao corpo do trabalhador o ritmo da máquina; seja ligando o salário do trabalhador diretamente ao número de peças produzidas (PERROT, 1988, p. 65), seja criando cargos como o de contramestre, que além de vigiar os trabalhadores, cuidava da manutenção e do andamento da maquinaria e da produção, assim extraía-se os saberes das mãos dos outros operários e os punha na mão de só. (PERROT, 1988, pp. 70, 71)

Referências:

ARIES, Philippe; DUBY, Georges. História da vida privada. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 5v.

PERROT, Michelle; BRESCIANI, Maria Stella Martins. Os excluídos da historia: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. 332 p.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Ensaio sobre a preguiça

Ensaio sobre a preguiça

Fabiele Lessa[1]

Uma leva de pensamentos sobre como seria o mundo sem o trabalho transcorre “o telencéfalo altamente desenvolvido” de um animal possuidor do “polegar opositor” (ILHA DAS FLORES, 1989), o então ser humano, que está a contemplar o mar em um fim de tarde. Mas, no mesmo instante, no mais íntimo momento de solidão em uma estação de metrô depois de dez horas de labuta em uma fábrica, o pai de família se orgulha de ter vendido seu corpo, pois bem sabe que “o trabalho dignifica o homem”. Ambos cristãos-ocidentais são donos de uma vida economicamente distinta, de diferentes graus de escolarização, no entanto, ambos e suas famílias abominam a preguiça: “O laço que ata preguiça e pecado é um nó invisível que prende imagens sociais de escárnio, condenação e medo” (CHAUI, 1991, p 10). Com o desenrolar das décadas, a façanha das máquinas, a produção do sentido da vida – “mediocridade feliz” -, o pecado se faz imoral à sociedade numa confusão com a própria ética. E assim, os ambos se multiplicam em múltiplos e diversos outros homens e mulheres que fazem da preguiça a fraqueza, o vício, a causa das criminalidades, a extrapolação dos prazeres, a destruição da família, a propensão da vida com menos racionalização de promessas futuras, a possibilidade da vida no espírito trágico.

A preguiça de um deve ser maquiada de outrem, assim, o medo do inferno em troca do medo dos olhos e bocas alheios. O céu adquirido com o emprego dos sonhos nos formatos mais diferenciados que a contemporaneidade tem produzido: operário, estagiário, profissional autônomo, liberal, funcionário-público, no modelo de trabalho tradicional ou com a gestão colaborativa. Mais os anos passam, mais “o trabalho como um freio para as nobres paixões do homem” (LAFARGUE, 1991, p 70), um dogma edificante da modernidade, da sociedade industrial, esta que em “sua instauração supõe não só transformações econômicas e tecnológicas, mas também a criação de novas regras do jogo, novas disciplinas” ( PERROT, 1988, p 53). Se na França do século XIX os operários eram os excluídos da história, que dizer dos preguiçosos convictos?

Lafargue ao escrever sobre a preguiça em 1880 pressupôs a falência do ócio justamente em uma época em que “burguês”, “proletariado”, “capital” e “trabalho” eram um dos termos efervescentes dos textos e discussões do cerco intelectual. No mesmo período em que se desenvolviam novas tecnologias, a ascensão da máquina, a criação de indústrias, aprimoramento da produção, teve início a percepção das estratégias de controle do operariado, a construção dos conceitos de “exploração da força de trabalho”, a “mais-valia”, a “luta de classes”, apontados por Marx, a “propriedade” criticada por Proudhon, entre tantos outros como Bakunin, Engels e Weber que conectados em suas trupes -anarquismo, comunismo ou socialismo e seus derivados - rompiam com a aceitação do modo de produção do momento. Segundo Chaui, os escritos de Lafargue que compilam o livro O Direito à Preguiça, vão de encontro com o “trabalho alienado”, conceito também explanado por seu sogro, Marx. Uma escrita ácida e sarcástica, de uma fala direta com os personagens do texto, burgueses e proletariados:

Trabalhem, trabalhem, proletários, para aumentar a riqueza social e suas misérias individuais, trabalhem, trabalhem para que, ficando mais pobres, tenham mais razões para trabalhar e tornarem-se miseráveis. Essa é a lei inexorável da produção capitalista.(LAFARGUE, 1991, p 79)

As palavras de Lafargue são ousadas, expõem a sujeição do proletariado do século XIX à uma força que nos tempos gregos, por exemplo, era reservado aos escravos; utiliza de termos religiosos que escamoteiam a sua ira numa ironia que desvela o espírito do capitalismo de Weber quando redige sobre a ética protestante. Destarte, o “Progresso” como o novo Deus para as quais as louvações da classe trabalhadora está direcionando a fé. E ainda a tradição familiar contestada no seio da disciplina fabril instalada.

Embora, alguns dos conceitos disseminados nesse período do escrito de Lafargue estejam hoje enfraquecidos devido à industrialização ter tomado outros rumos, o quarto pecado capital soprado por entre as frestas da igreja e do estado, é presente nos cálices e nos devaneios da atualidade. Muito timidamente, a preguiça agenda hora para se manifestar nesses corpos: As férias, os finais de semana e os feriados, tão ocupados pelos novos trabalhadores quanto os semáforos das metrópoles ocupados com seus e “vadios” e “vagabundos”.

Sobretudo, na maquinaria que perdura, a dignidade ainda perpassa pelo ato de trabalhar e a preguiça ainda é a destruidora dos lares e a geradora de culpa. Nenhum triunfo de “progresso” almejado no século XIX, apenas a transformação do trabalho.

Referências

LAFARGUE, Paul. O direito a preguica. 3. ed. Lisboa : Teorema, 1991?

ILHA das Flores. Direção: Jorge Furtado, 1989.

PERROT, Michele. Os excluídos da historia: operários, mulheres e prisioneiros. -Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1988. p. 53- 125.



[1] Acadêmica do 5º semestre de História FURB.